Os monstros |
por Carlos Alberto Mattos
Pós-indústria, pós-mercado, estética como política, amizade, política do afeto, cachaça como combustível de criação – palavras e expressões que ficam das conversas e debates da 14ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O chamado Novíssimo Cinema Brasileiro esteve mais uma vez na tela e na boca das pessoas. A seguir, algumas observações a partir dos cinco longas de ficção que vi no Cine-Tenda e dos que constavam da programação e eu já tinha visto antes.
Essas notas não se aplicam à totalidade do cinema ficcional que se faz hoje no Brasil, nem mesmo ao que é feito por jovens. Referem- se antes a uma parcela que chega à Mostra por obra de uma curadoria especialmente interessada na inovação formal e em posturas de criação e produção menos convencionais.
Os Monstros
Repartição de autoria e criação coletiva
A maioria dos filmes é feita em grupo, sendo a turma da cearense Alumbramento (Os Monstros) o epíteto dessa forma de invenção e produção. Os gêmeos Luiz e Ricardo Pretti, junto com os primos Guto Parente e Rafael Diógenes, concebem, dirigem e atuam como um quarteto inseparável, procurando expressar algo que soa próprio do seu jeito de ser (juvenil cool, digamos) e do seu desejo um tanto angelical de simplesmente fazer filmes.
Mesmo nos trabalhos assinados por um só diretor, existe (e é ressaltada) a contribuição autoral de membros da equipe. Equipes, aliás, plenamente integradas a grupos como os da Alumbramento, da Cavídeo (Riscado, Enchente, Copa Vidigal) e da Teia (O Céu sobre os Ombros, Ex-isto). Nota-se, aliás, um regime de colaboração muito ativo entre realizadores e técnicos de estados diferentes, sobretudo Ceará, Pernambuco, Minas e São Paulo. O diretor de fotografia cearense Ivo Lopes Araújo, talvez a maior referência estética dessa geração, tinha quatro longas (de três estados) na mostra, e rolava uma campanha para homenageá-lo no ano que vem.
O conceito de cinema de autor caiu em desgraça em certa parcela de cineastas e críticos jovens. A ideia é devolver à obra (como se ela existisse “em si”) uma primazia que teria sido usurpada pela figura do autor individual. Não há sinais de humildade nessa atitude, mas talvez um misto de atitude blasé, uma certa utopia essencialista e um bocado de gregarismo também. Até um diretor cheio de si e de citações eruditas, como o ex-crítico Tiago Mata Machado, incorpora no vencedor Os Residentes, seu segundo longa, os influxos de artistas plásticos e gente de teatro, sem falar no casal de protagonistas que são também diretores.
Os Residentes
Narratividade tênue e performance
Nos novíssimos filmes de ficção percebe-se o que Cezar Migliorin atribui a uma “crise do roteiro”. Como vários desses longas são feitos à margem dos editais – ou subvertem alguma rigidez do roteiro na montagem, como foi o caso de Transeunte, de Eryk Rocha –, a preocupação com a escritura se dilui em benefício do momento da filmagem. As cenas são então concebidas como algo que fica entre a experiência (vivida) e a experimentaçāo (encenada). O resultado são filmes compostos por uma sucessão de performances. Os Residentes, com seus sketches godard-debordianos sobre guerrilha e poder, é o exemplo mais acabado desse tipo de filme “espatifado contra a parede” (no feliz dizer do crítico Fábio Andrade).
É claro que nem todos são filmes em cacos. Nem todos enfocam situações nas vidas de seus personagens de maneira tão pouco linear quanto O Céu Sobre os Ombros, Avenida Brasília Formosa e Transeunte, este o mais belo que vi em Tiradentes. Mas, ainda quando há cronologia e lógica de causa e efeito, como em Riscado e Os Monstros, a força das unidades e a sua relativa completude se impõem sobre a tênue linha que as une.
Transeunte
Viver no cinema
O espírito colaborativista, a disposição para filmar com pouco dinheiro e a prevalência da estética sobre a produção (ou talvez a transformação da estética em recurso de produção) são traços desse Novíssimo Cinema Brasileiro. Há, pelo menos no discurso de alguns, um saudável desinteresse pelo mainstream e um preocupante descaso pela política institucionalizada, mesmo a política do cinema. A ideia de política é frequentemente empurrada para as bordas – ou como conceito intelectual, ou como articulação de relações no nível do cotidiano.
Esse cinema de ficção essencialista e às vezes bastante autocentrado exprime, no fim das contas, o desejo de um bocado de jovens para quem, mais que viver DO cinema, importa viver NO cinema. Ter “o cinema não como profissão, mas como vocação”, para usar termos de Marcelo Ikeda e Dellani Lima no livro que lançaram em Tiradentes, Cinema de Garagem – Um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI.
{extraído de http://carmattos.wordpress.com}
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