Amir Labaki
A primeira e única projeção do mais novo documentário de Eduardo Coutinho, “Um Dia na Vida”, pode ter acontecido no último dia 28, como programa surpresa da 34a. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Apresentado como “material gravado como pesquisa para um filme futuro”, sem créditos, o filme edita segundo a rigorosa cronologia do registro cerca de 19 horas de programação da televisão aberta brasileira entre os dias 1o. e 2 de outubro do ano passado.
“Meu interesse principal era uma pilhagem”, explicou Coutinho logo após a sessão. O ponto de partida é seu atual interesse em ir “contra essa idéia de artista original”. Inicialmente a intenção era trabalhar a idéia da reapropriação a partir de fontes literárias e jornalísticas.
Deve seguir este mapa o novo projeto que o diretor de “Jogo de Cena” começa a rodar no próximo mês. Mas, antes, surgiu a idéia de trabalhar a citação no universo televisivo. Fez-se “Um Dia na Vida”, sabendo-se a priori das imensas dificuldades no campo da negociação dos direitos desse material.
Não sou um especialista mas seguramente o desafio jurídico não teria as mesmas proporções em países com legislações menos draconianas como a Alemanha e os EUA. No Brasil, o cipoal dos direitos de som e imagem coloca uma imensa interrogação quanto ao futuro de “Um Dia na Vida” na situação-cinema a que indubitavelmente pertence, com projeção pública em tela grande.
Como notou Jorge Furtado, é essencial ao projeto a mudança de status da atenção do espectador, da dispersão típica à experiência televisiva à concentração inerente ao espetáculo cinematográfico. “Um Dia na Vida” nos convida a assistir atentamente fragmentos de um fluxo de imagens e sons aos quais é costume dedicar uma atenção fluida.
Sucedem-se na tela, gravados no intervalo de tempo entre uma e outra madrugada, trechos de programas e comerciais de uma jornada comum da televisão aberta do Brasil. O arco se abre e se fecha com tele-evangélicos, passando pelo tradicional cardápio infanto-feminino das manhãs (de telecursos e jornais matinais a Tom & Jerry e Ana Maria Braga), por telejornais e programas sensacionalistas de todas as tardes, até desembocar no cardápio de novelas, telejornalismo e “celebrity shows” da grade noturna.
Uma dia na vida da TV mais popular brasileira confirma-se assim como um circo de horrores. Exploração é o conceito chave: da violência urbana, do corpo da mulher e da fé dos ingênuos, principalmente. Tudo parece programado pelo mínimo denominador comum, custe o que custar, visando maximizar a audiência, e logo o lucro.
“Um Dia na Vida” apresenta de pronto um inequívoco valor de registro. Sob este ponto de vista, o novo Coutinho aplica a outro universo a fórmula, por exemplo, de “O Fim e o Princípio” (2005). Aqui, trata-se de estabelecer um arquivo televisivo sem paralelos; lá, o objetivo era gravar para a posteridade a cultura oral de anciões do sertão nordestino. A base é a mesma: o impulso documental.
A diferença essencial é o método. Em seus filmes anteriores, sobretudo no “cinema de entrevista” prévio à sua presente fase mais experimental, Eduardo Coutinho catalisava a fala das pessoas. Agora, é a TV que fala. O cineasta molda seu material não mais atuando ativamente no momento da gravação e posteriormente durante o processo de edição. Ele agora atua ao delimitar o material a ser registrado (as 19 horas da programação no ar) e, como antes, ao retrabalhá-lo durante a edição.
A ruptura é assim menos radical do que parece acreditar Coutinho. “É o filme mais impessoal que eu poderia fazer em minha vida”, afirmou o cineasta. Ledo engano.
Tanto quanto em qualquer de seus outros filmes, “Um Dia na Vida” existe devido às escolhas de Eduardo Coutinho. Foi ele que determinou o que registrar, quando o fazer e de que forma organizar o material de base para sua apresentação pública. “Um filme só de citações”, como almeja Coutinho, em nada elimina a originalidade da autoria. O jogo tem outras regras mas seu arquiteto não se anula ao simplesmente trabalhar com peças emprestadas. “Um Dia na Vida” é um filme de Eduardo Coutinho –e, mesmo ainda precisando de um pente fino na edição, me parece dos maiores.
PS – Lanço neste sábado, dia 6, a partir das 11h, "É Tudo Cinema -15 Anos de É Tudo Verdade" (Imprensa Oficial), um balanço da trajetória do festival, com prefácio de Eduardo Escorel. Será na Livraria da Vila - Jardins, Al. Lorena, 1731, em São Paulo. No Rio, a noite de autógrafos acontece no dia 9, terça, a partir das 19h, na Livraria Blooks, ao lado do Unibanco Arteplex, Praia de Botafogo, 316. Adoraria, caro leitor, receber seu abraço –e, depois, inverter a mão e ler seus comentários.
[extraído do www.etudoverdade.com.br, 05/11/10]
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