sexta-feira, 15 de abril de 2011

“O Diário de Márcia” revela a subjetividade de uma transexual

A primeira exibição pública de “O diário de Márcia” acontece no Cineespaço do Mag Shopping, um complexo de quatro salas recém-inaugurado em João Pessoa



A Cooperativa Filmes a Granel, criada para viabilizar obras audiovisuais de baixíssimo orçamento, lança mais um título de sua safra de filmes. O curta-metragem “O diário de Márcia”, dirigido por Bertrand Lira, tem sua estréia neste sábado, dia 16, às 20h., e apresenta um relato pessoal e intimista de Márcia, transexual paraibana, sobre o dilema de viver o universo feminino num corpo de homem, enquanto espera retirar o último vestígio do sexo que atormenta sua existência.

A primeira exibição pública de “O diário de Márcia” acontece no Cineespaço do Mag Shopping, um complexo de quatro salas recém-inaugurado em João Pessoa que traz a marca cineclubista do seu proprietário Adhemar Oliveira ao apoiar o cinema produzido localmente. O documentário de 20min de duração tem o apoio do Sebrae-PB, Núcleo de Produção Digital (NPD-PB), Aliança Francesa e Pigmento Cinematográfico. Com este filme, Bertrand finaliza sua trilogia sobre a intolerância sexual iniciada com dos documentários “Homens” (2008), co-dirigido com a capixaba Lúcia Caus, e “O Rebeliado”, seu primeiro longa-metragem, patrocinado pelo FMC, que serão exibidos no 3º Thessaloniki International Lgbt Short Film Festival e o 13º Long Film Tributes _que acontecem simultaneamente em maio na cidade de Tessalonika, na Grécia.

O documentário “O Diário de Márcia” conta a história de Márcia Gadelha, transexual paraibana, 46 anos, pedagoga e cerimonialista da Câmara Municipal de João Pessoa. A partir do ponto de vista da própria protagonista, documenta sua história utilizando uma narrativa em tom intimista nos moldes de um diário, em primeira pessoa, onde Márcia “faz anotações” de momentos importantes de sua existência: a infância, a adolescência e a fase adulta. Não são apenas registros dessas fases da sua vida. Ela tece comentários, elocubrações sobre sua existência, tentando entender a rejeição familiar (avós, pais e irmãos) à sua conduta “inadequada” para um “macho” e a violência (física e psicológica) a ela infligida, principalmente pela família. Ela será a primeira transexual a ser submetida na Paraíba a esse procedimento pelo Sistema único de Saúde (SUS).

O filme tem uma abordagem reflexiva, isto é, sua narrativa discute o próprio processo de realização de um filme do gênero documentário. Aparentemente, o diretor permite que a personagem opine sobre a condução da narrativa, o que se realiza em parte. A protagonista relata sobre o medo que vivenciou na infância e adolescência com os constantes achincalhes da vizinhança e dos colegas de escola. Medo que levava o então garoto Marquinhos a fugir do convívio social; a enrijecer a postura do corpo e a se fechar no seu mundo.

Quando adolescente, a família o leva a um psiquiatra que, acreditando na transitoriedade de sua condição, lhe recomenda esportes “masculinos” como natação e judô como terapia para a cura do seu “desvio”. A família investe pesado na esperança da mudança prometida pelo psiquiatra. Nesses esportes, o garoto conhece o assédio sexual dos colegas e do professor. O “tratamento” recomendado pelo especialista em nada o faz mudar.

Na fase adulta, busca conforto para seus conflitos existenciais no espiritismo kardecista. No grupo espírita, microcosmo da sociedade lá fora, sua aceitação é dividida entre os que lhe aceitam e os que o discriminam. Decepcionado, busca, e encontra, na umbanda e, depois, no candomblé, o apoio que precisa. E se torna praticante dessa religião, sem deixar de lado totalmente o espiritismo. Agora, ela se considera “espírita candomblecista cristã”.

Profissionalmente, Márcia está integrada ao quadro de funcionários da Câmara Municipal, aparentemente, sem conflitos relevantes. Da mesma forma, foi contratada, como reabilitadora, pelo Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência (Funad). Na época, à medida que se tornava mais efeminado nas atitudes e no figurino, menos oportunidades lhe eram apresentadas. Apesar disso, a personagem se mostra orgulhosa das conquistas alcançadas profissionalmente.

Com esta obra audiovisual, Bertrand Lira pretende colocar a discussão sobre a violência social contra os que agem e pensam diferente. Por mais avanços, do ponto de vista legal, que as chamadas minorias tenham alcançado, a intolerância a opções individuais ainda tem uma forte presença na sociedade brasileira e, em particular, no universo local de mentalidade machista e patriarcal. Discutir essa questão se reveste de importância no contexto atual de luta e militância pela aceitação e afirmação social dos grupos LGBT. Além do conteúdo pedagógico que a proposta se reveste, pois o desconhecimento do outro gera o medo, o preconceito e a violência”, conclui o cineasta que também assina o argumento e roteiro do filme.

O documentário que aborda o perfil de um personagem é uma vertente valorizada do documentário contemporâneo, não importando se o personagem tem ou não uma importância histórica. São personagens desconhecidos, aparentemente sem muito ou nenhum interesse para a sociedade mas que têm muito a revelar sobre o grupo social do qual faz parte, ou sobre a própria sociedade como um todo. Mesmo centrado na trajetória de um único indivíduo, esse tipo de documentário não se esgota numa subjetividade particular porque é igualmente revelador de um imaginário coletivo em diversos aspectos, com notável abrangência social e política.

Realizadores se mobilizam para viabilizar seus projetos numa cooperativa e o audiovisual paraibano ganha novas produções. A Cooperativa Filmes a Granel surgiu do interesse de mais de uma dezena de realizadores independentes da Paraíba em formar uma cooperativa que viabilizasse suas próprias produções de curta-metragem. São pessoas que pensam diferente, que querem fazer filmes baratos e rápidos para expressar seus distintos pontos de vista sobre a Paraíba e o mundo. A cooperativa é um exemplo prático de como a sociedade civil organizada pode produzir cultura e conhecimento usando criativamente a força de trabalho colaborativo de seus participantes. O Sebrae-PB aderiu de forma entusiasta à ideia e tem dado apoio a todos os projetos.


Abordagem estética e narrativa
A equipe de “O diário de Márcia” tem Heleno Bernardo na produção executiva, Leandro Cunha na fotografia, Daslei Ribeiro no som e na edição, Ely Marques na finalização, Débora Oposlki no desenho de som, Diego Brandão com a animação da abertura e Thomaz Rodrigues com o still (fotos de cena) O trabalho estético e fotográfico de “O diário de Márcia” revela aspectos da intimidade da personagem que narra em primeira pessoa. A fala da personagem é o fio condutor da narrativa, o veículo que nos transporta ao seu universo particular e subjetivo. Falas, sons e imagens expressam o imaginário da protagonista, sua visão de mundo, como ela vê hoje o que vivenciou no passado e o que vivencia no presente com uma “cabeça” de mulher num corpo de aparência visivelmente feminina, mas mesmo assim ainda de homem.

Bertrand estruturou a narrativa tendo as falas da personagem como fio condutor e que explora a partir de suas vivências, impressões e reflexões sobre seu passado e o presente sem se prender a uma seqüência cronológica. São mostradas cenas do cotidiano da protagonista (suas atividades na Câmara Municipal e na Funad; o tempo dedicado aos cuidados com o corpo e o vestuário _ com suas visitas ao cabeleireiro e às lojas de grifes renomadas _; o exercício da religiosidade no candomblé e no espiritismo.

O diretor:
Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba com especialização em Metodologias da Comunicação. Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFPB). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte com a tese “Luz e Sombra: uma interpretação de suas significações imaginárias nas imagens do cinema expressionista alemão e do cinema noir americano.” É professor efetivo do Departamento de Mídias Digitais e do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFPB e coordenador do Grupo de Estudos, pesquisa e Produção em Audiovisual (Geppau).
Realizou estágios de cinema documental, em 1982 e 1986, no Centro de Formação em Cinema Direto, Paris, França. Além de cursos para formação de fotógrafos, estágios de realização em vídeo, entre outros, em João Pessoa.
Foi fotógrafo da Unidade de Fotografia da Fundação Espaço Cultural da Paraíba (FUNESC) de junho de 1993 a julho de 1998.
Entre suas obras mais recentes estão o longa-metragem “O Rebeliado”  (2009), “Crias da Piollin” (2008) e os curtas “Homens” (2008), “O senhor do engenho” (2004) e “Bom dia Maria de Nazareth” (2003) selecionados para diversos festivais no Brasil e no exterior. “Bom dia Maria de Nazareth”, por exemplo, recebeu o JVC Grand Prize do 26º Tokyo Vídeo e o Excellence Award do JVC Tokyo Vídeo festival de 2004.

Ficha Técnica de “O Diário de Márcia”
Direção, argumento e roteiro
Bertrand Lira
Produção Executiva
Heleno Bernardo
Direção de Fotografia
Leandro Cunha
1º assistente: Eduardo Lins
Som Direto: Daslei Ribeiro
Som adicional :Bruno de Sales
Edição: Daslei Ribeiro
Animação: Diego Brandão
Finalização: Ely Marques
Still: Thomaz Rodrigues
Assistente de direção:
Líbia Cecília Bandeira
Assistente de produção: Isa Albuquerque

Com a participação de
Márcia Gadelha, Marilene Gadelha, Patrícia Santos, Glades Ximenes, Pai Manuel, Pai Edilson, Larissa Aguiar, Rosália Lins, Banda Musical da Polícia Militar, Fátima Smith, Karyn de Miranda e integrantes do Terreiro Ylê Axé Oyá Ygubalé de Mangabeira.

O que: Avant-première do documentário “O Diário de Márcia”
Direção: Bertrand Lira
Quando: dia 16 de abril, às 20h
Onde: Sala 3D do Cineespaço do Mag Shopping
Av. Flávio Ribeiro Coutinho, 115 Manaíra
Contatos: Bertrand Lira  _ cel. (83) 8877-47 47 e 3247 65 66

{Por Redação Diário PB | http://www.diariopb.com.br/ | 12 abr 2011}

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