segunda-feira, 18 de julho de 2011

De diários e de filmes


por João Batista B. Brito













Com direção, argumento e roteiro de Bertrand Lira, o curta-metragem “O diário de Márcia” faz, em preciosos vinte minutos, um absorvente passeio audiovisual, mais ou menos intimista, pela vida da protagonista, e o faz, até certo ponto, a partir de sua voz, daí a palavra “diário” no título.
E quem é Márcia? Aparentemente, apenas uma funcionária da Câmara Municipal de João Pessoa, uma moça elegante, charmosa, inteligente e desenvolta que, com rigorosa competência, cumpre sua função de cerimonialista naquela casa, sendo uma colega de trabalho respeitada e querida, conforme depoimento in praesentia de sua chefe. Formada em pedagogia, também presta serviço junto ao Centro de Apoio ao Portador de Deficiência.
Bem, se fosse só isso, o filme não teria conflito, aquele elemento que torna toda narrativa interessante.
Infelizmente, a felicidade dos espectadores – ou seja, a existência de conflito em um filme – quase sempre não coincide com a felicidade da personagem na tela, sobretudo quando se trata de documentário, gênero que, em princípio, retrata o real tal qual ele é. Sim, a estória de Márcia, sintética e expressivamente narrada pela câmera de Bertrand Lira, não é nem comum, nem linear, nem tranquila.
Nascida com corpo masculino, Márcia Gadelha foi registrada como Marcos Gadelha, embora, desde sempre seu espírito fosse de mulher. Por causa desse conflito (!), toda a existência de Marcos/Márcia foi e tem sido de sofrimento. Castigada por uma família classe-média e preconceituosa, achincalhada pelos vizinhos, foi vítima de violência física e psicológica durante a infância e adolescência, ao ponto de beirar a desestruturação emocional. Entre as agressões sofridas, está um estupro quando tinha 12 anos de idade.
Uma pessoa fraca talvez tivesse sucumbido aos ataques alheios. Guerreira, como ela própria se define, Márcia não. Ao tomar plena consciência de sua transexualidade, ela assumiu sua natureza feminina, e hoje é socialmente reconhecida como mulher. Em suas muitas crises existenciais, sem grande ajuda da ciência, apelou para a religião e encontrou apoio e compreensão, primeiramente no espiritismo, e em seguida, no candomblé, e atualmente Márcia (e não mais Marcos) se define como uma “espírita candomblecista”.
Comovente e também dolorosamente convincente, há no filme uma fala da protagonista que dá a idéia do drama de Márcia, e, especialmente, do seu nível de sobriedade e lucidez em relação a sua condição. Diz ela, com jeito seguro de quem já muito refletiu sobre o assunto e já muito o discutiu: “se fosse doença, eu teria procurado a cura; se fosse aprendido, eu teria desaprendido; se fosse opção, eu jamais teria optado”.
Hoje aos 46 anos de idade, Márcia sonha com a possibilidade de uma operação cirúrgica que dê compleição a sua condição de mulher.
Obviamente, a dramática e cativante figura de Márcia já seria suficiente para tornar qualquer filme interessante, porém, o grande lance no filme de Bertrand Lira é que ele, para se afirmar como cinema, não se rende completamente ao conflito de que partiu. Se se rendesse, seria tão somente um registro jornalístico. E não é. Na verdade, o seu mérito maior consiste em um sutil e indescritível equilíbrio entre o mimetismo realista e a invenção fílmica. Explico-me.
A cena inicial nos mostra uma refeição na casa de Márcia, onde, na presença da equipe de filmagem, ela é indagada sobre o que espera do filme. Não só nesta ocasião, como também em outro momento, de sessão espírita, ela o diz, e em parte o roteiro (seguindo a idéia de “diário”) toma a direção (sentido duplo) de sua fala. Seria até possível ao espectador imaginar o jogo camaleônico subjacente, entre protagonista e filme: de alguma maneira, a fineza, elegância e charme de uma, sendo a fineza, elegância e charme do outro...
Mas, ora, essa interessante inclinação metalingüística, em que a protagonista influencia um roteiro aberto, é só “uma parte da verdade”, pois o filme se perfaz de forma própria, e tanto “segue” Márcia, como – digamos assim - a “inventa”. E isto de modo inteiriço, inconsútil, sem que seja fácil para o espectador distinguir uma coisa da outra.
Portanto, - e se for possível dizer isto -, um pouco mais que a real, a Márcia que atinge o espectador é um belo amálgama cinemático, brotado, tanto do “diário” da protagonista, como do “diário” do cineasta, cuja cabeça inventiva constrói a mise-en-scène de modo extremamente pessoal, quer na sua forma de escolher o objeto ou o cenário a filmar, quer na maneira muito particular de enquadrar, de iluminar, de sonorizar e, principalmente, de editar.
Dois exemplos, pequenos mas ilustrativos, estão na abertura e no final do filme. Vejam que optar pela técnica do cartum (e não por outra!) para representar a rosa ensangüentada que Márcia sugerira como metáfora de sua vida, é uma escolha da direção que, não meramente mimetiza a fala da protagonista, mas, a interpreta. Do mesmo modo, optar pelo playback da protagonista “cantando” “Je ne regrette rien”, no desenlace, pode ter sido sugerido (além da óbvia associação temática do sofrimento feminino) pela fala em que Márcia revela querer viver em Paris, porém, mais uma vez, consiste, por parte da direção, em uma interpretação fílmica, autoral, da vida da protagonista.
Enfim, e um pouco paradoxalmente, se ser homem e ser mulher, para Márcia permanece um conflito e uma maldição, para o filme de Bertrand Lira, ser documento e ser arte cinematográfica é, ao contrário, uma harmonia e uma benção.
O sucesso, tanto recepcional quanto estético, de “O diário de Márcia” não é surpresa para quem conhece o sério, fecundo e criativo trabalho de Bertrand Lira que, a essa altura, já exibe (duplo sentido) um currículo profissional digno de nota e de louros.
Professor de linguagem audiovisual na UFPB, com brilhante tese de doutorado sobre a fotografia cinematográfica nas suas vertentes históricas, expressionista alemã e noir americana, Bertrand Lira é autor de vários filmes, premiados no Brasil e no exterior, dos quais cito aqui os mais recentes: os longas “O rebeliado” (2009) e “Crias do Piolim” (2008), e os curtas: “Homens” (2008), “O senhor do engenho” (2004) e “Bom dia, Maria de Nazaré” (2003), este último tendo lhe valido o prêmio Excellence Award no JVC Tokyo Vídeo Festival, no Japão em 2004.
Terceiro item de uma trilogia sobre a questão da diversidade sexual, (os outros são: “O rebeliado” e “Homens”), com “O diário de Márcia” Bertrand Lira nos oferece mais um excelente exemplo do cinema, rico e variado, que se pratica na Paraíba de hoje, onde - embora nem sempre tão visível para o grande público - uma verdadeira efervescência cinematográfica se configura, efervescência esta que soma bem duas coisas diferentes: de um lado, a tradição paraibana de cinema que vem dos anos sessenta, e de outro, as facilidades trazidas pelas novas tecnologias eletrônicas deste novo milênio, mais leves e mais manuseáveis. Só que, como se sabe, nem tradição, nem tecnologia, determina por si, qualidade, e é aqui que entra o algo mais do trabalho de Bertrand Lira, a saber, o seu inegável talento.

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